Pequena bússola espiritual para nosso tempo

CLEMENT Olivier
SOP (Service Orthodoxe de Presse) nº 334, janeiro 2009
tradução de monja Rebeca (Pereira)



“A Europa ocidental está diante da escolha entre o nada e a santidade, entre a loucura e a Trindade...O que poderia subsistir das sociedades ditas cristãs se afunda ou se interioriza. Toda uma juventude cresce, ávida por uma simples fé, simplesmente exprimida...”

Como assumir plenamente sua vocação de leigo a seguir a Cristo, “em Cristo”? Que lugar dar à oração, à amizade? O cuidado dos pobres, o diálogo com outras religiões e as confissões cristãs? E sobretudo, uma conversão do olhar, uma benevolência do coração... “Somente o Cristianismo, por vezes profundo e generoso, pode constituir a bússola que nos permitirá de navegar sobre o oceano deste mundo difícil e complicado”, estima Olivier Clèment num pequeno volume das edições Desclée de Brouwer, sob o título Petite boussole spirituelle pour notre temps.

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O laicato é a normalidade na qual estamos mergulhados. A sociedade secular é, de certa forma, nosso ambiente, o ar que respiramos mesmo quando dormimos. Ser cristão hoje parte de lá.

Todo leigo (do grego laikos) é membro do laos, do povo, na ocorrência do povo de Deus. Batizado, ungido do Espírito (crismado), ele é “rei, sacerdote e profeta”. Rei, por tentar dominar seu destino na luz de Deus, de ordená-lo no sentido profundo da palavra; sacerdote, por fazer oferenda dos seres, das coisas do mundo; profeta, por inscrever um outro lugar na vida cotidiana dos homens e, por lá, lhes abrir o porvir.

Não pode haver profissionais do Cristianismo, neste aspecto. Cremos nas épocas de Cristandade, com o papel de direção dado ao clero, aquele de inspiração e de exemplo dado aos monges.

Todavia hoje, em nosso país, percebemos que o clero não é mais uma oligarquia privilegiada, mas que se compõe de homens que se definem como servidores, abaixo ou ainda acima dos outros. Quanto ao monaquismo, ele constitui sempre, como dizia São João Crisóstomo, uma “santo desvio”, tornado necessário pelo emparvecimento do mundo cristão. No século XIII, por exemplo, quando todo Ocidente estava batizado, converter-se significava tornar-se monge. Hoje, isto significa antes de tudo tentar tornar-se cristão, quer dizer, se empenhar seriamente na Igreja, no serviço de Cristo, e então, na força da Ressurreição, no serviço dos outros.

A distância, desqualificadora para os primeiros, entre os leigos e os monges, tornou-se hoje a distância (que não é desqualificadora para ninguém) entre ateus, agnósticos, etc., e cristãos que tentam vivem seu Cristianismo.

Um leigo cristão é, logo, plenamente responsável (com todos os outros, “uma voz no coro” como dizia Siniavski) da Igreja e de seu resplendor. Logo, é bom que mesmo apesar de difícil ele esteja mergulhado na secularidade, da qual ele pertence um pouco, pelo pouco que seja, de exorcizar as tendências destruidoras e aprofundar os germes da verdadeira vida.

Durante muitos anos, ensinei a história num grande liceu parisiense. Não tentei converter meus alunos (poderia em virtude do meu dever de leigo), mas antes despertá-los, lhes colocar questões, de lhes colocar a caminho. Seus caminhos se aproximaram, por vezes, do meu, por vezes, se afastaram. Existem ofícios onde este testemunho indireto não é possível; mas pode sempre se exprimir nas relações de trabalho. A Liturgia torna-se o pôlo de nossa vida; a oração, que a interioriza, nos dá a fora de não sucumbir ao desencorajamento, à amargura, e por vezes de por um gesto, de dirigir uma palavra que os sentidos sugerem.

Não existe receita: é o próprio fato de estar na secularidade e a Liturgia que podem dar à nossa existência uma fecundidade inesperada. Existe também, em Sant´Egidio por exemplo, engajamentos sistemáticos na secularidade para portar este testemunho. Eu também vivi isto, trabalhando, ao lado de minha atividade profissional, a consolidar pequenas comunidades ortodoxas que nasceram em França e orientá-las ao testemunho e à partilha. Eis que tenho o sentimento de que meus alunos estavam interessados pelos meus cursos justamente pelo fato deles sentirem em mim outras preocupações, uma abertura sobre uma outra dimensão da existência.

A Bíblia não nos torna estrangeiros à história. Ela é, muito pelo contrário, uma fonte insaciável de interesse para tudo de humano. Ela é a fonte do desejo irrepreensível duma humanidade não humilhada, que aspira à plenitude e à divino-humanidade.

É Frederic Hegel que introduziu o jornal em nossa problemática história. Por ele, o Espírito, o divino se realizam na história, uma história cujo símbolo é o jornal. A leitura do jornal, dizia ele, substituiu hoje a oração da manhã (poderíamos adicionar que agora a televisão substituiu aquela da noite...). Depois, os teólogos tentaram arranjar as coisas dizendo que um cristão deveria ter a Bíblia numa mão e o jornal na outra.
  
Poderíamos primeiramente aprender a criticar a Bíblia pela história e a história pela Bíblia! Criticar a Bíblia pela história, é o imenso labor da exegese que estuda a dimensão humana da revelação, a produção dos textos nas estruturas psicossociológicas duma época. Nas estruturas e não nos textos produzidos pelas estruturas: pois o sentido último, a parte divina, poderíamos dizer, escapará sempre à história (e logo à exegese), para se desvendar no Espírito. Não é por nada que a última edição da Bíblia de Jerusalém dá em margem chaves de interpretação empregadas geralmente aos Padres da Igreja.

No fundo, são as mesmas buscas que encontramos quando se trata de criticar a história pela Bíblia. Precisa-se primeiramente praticar a história da maneira mais honesta possível, evitando toda explicação ideológica, por exemplo as infra-estruturas e as supra-estruturas da vulgata marxista, na medida em que todas as estruturas não deixam de agir umas sobre as outras. Não é uma abordagem que não seja indispensável (econômica, social, psicológica, religiosa) sem que nenhuma, nesta análise escrupulosa, pretende ter a última palavra. O modelo, para mim, é neste domínio a antropologia histórica e religiosa de Alphonse Dupront.

Aqui também, o sentido último, a “meta-história” como dizia Nicolas Berdiaev, pertence ao espiritual, por vezes visão global e ultrapassagem. Esclarecimento escatológico, na recusa de toda “reificação” pelo milenarismo ou messianismo.

Mas é necessário responder e não fugir. Ama a Deus de todo o teu ser, diz Jesus, e o próximo como a ti mesmo. E estes dois Mandamentos não deixam de fazer um. O homem, e em primeiro lugar o mais pobre, é o sacramento de Deus para o homem, explica a parábola do Julgamento no capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus. Cada vez que fazes concretamente o bem ao pequenino, é a Mim que fazes. Não podemos “contemplar” sem servimos o próximo: ver Deus sobre o rosto do outro, sobre este rosto pobre e nu, tão frágil (Emmanuel Levinas). Se, quando estás mergulhado na oração, disse um místico (Mestre Eckhart, penso eu), um mendigo vem te pedir uma tigela de sopa, não hesite, arranca-te da oração, prepara e oferece a tigela de sopa.

Reciprocamente, não há serviço do próximo sem abertura interior a uma outra luz que só pode evitar a usura, a lassidão, a amargura. Quem somente pode dar a imaginação de iniciativas inesperadas, geralmente tidas pelos outros como impossíveis. [...]

Existe em nossa sociedade uma grande incitação a pensar em nós mesmos. E unicamente a isto. É o único mantra que não abaixa a voz, nem mesmo nas grandes mutações nas quais somos mergulhados, aquelas da sociedade virtual, do frenesim das grandes cidades, do fim do otimismo que seguiu o 11 de setembro de 2001.

A fraternidade cristã só pode tomar suas distâncias com uma sociedade rápida, individualista. Ela implica a dureza e certo nível de comunhão. Ela implica reter-se face ao outro. A amizade é aqui uma dimensão fundamental. No Antigo Testamento “estar sem amigo” se aparentava a “estar fora de Deus”. O homem da sociedade liberal só tem raros amigos: ele tem relações, conhecimentos, dos quais se serve no melhor de seus interesses. Encontramos, aliás, no Antigo Testamento, notoriamente em Eclesiastes e no Livro dos Provérbios, uma concepção assaz semelhante da amizade: o amigo é um sustento, uma defesa, mas logo em breve tudo é levado por uma concepção espiritual da amizade. A linha horizontal, utilitária, é cortada pela linha vertical que designa a transcendência. Assim, ajudar um amigo é “uma oferenda ao Senhor” (Si. 14, 11), “o irmão confortado pelo irmão está firme como uma cidade forte” (Pr. 18, 19). Com a amizade de David e Jônatas, nos elevamos acima de toda concepção utilitária: “A alma de Jônatas se apega à alma de David, e Jônatas o ama com sua alma” (I Sm. 18, 1). Um elemento trágico aparecia, como uma antecipação da cruz.

Jesus realiza n´Ele a unidade de todos os homens. Esta unidade se exprime em diversos níveis de consciência e de intensidade para culminar nas amizades pessoais de Cristo, sobretudo com Marta, Maria e Lázaro. É significativo que o único adulto que Ele tire da morte seja um de Seus amigos pessoais, Lázaro. Na beira de Sua paixão, Ele chama “amigos” Seus Apóstolos. “Quando dois ou três estiverem reunidos em Meu Nome, Eu estou lá, no meio deles”. (Mt. 18, 20). A amizade aparece como uma expressão privilegiada da comunhão cristã. O que sublinha também o caráter pessoal e não simplesmente comunitário da amizade de Cristo, é que este envia os Apóstolos a levarem testemunho de dois em dois. [...]

É curioso de ver com que facilidade muitos dentre nós se privam do necessário. Não se trata de alimento, mas de oração que nos ajuda a nos reencontrarmos nós mesmos, a tomar distância e a nos aproximarmos da vida e das relações com os outros, na oração pessoal e na oração comum. É uma fonte de energia que não risca de se esgotar.

A oração abre o homem a Deus e logo abre a Deus a história. Ao mesmo tempo, ela permite ao homem de ser plenamente ele mesmo, posto que na profundeza de seu ser, ele está em relação com Deus, este Deus de Quem ele é a imagem. Assim, a oração não nasce de nós, mas ela nos é dada. O Espírito Santo, diz São Paulo, ora em nossos corações, murmurando “Aba, Pai” (Ga. 4, 6; Rm. 8, 15). Decerto, “não sabemos o que havemos de pedir como convém”, mas o Espírito “vem ao socorro de nossa fraqueza” (Rm. 8, 26).

Logo, a oração está sempre próxima de mim. Num certo sentido, minha própria existência é oração, mas de uma maneira inconsciente. Momentos de crise, paroxismos ou silêncio intenso, podem fazê-la surgir. A disciplina da Igreja, a oração da noite e da manhã, a eucaristia dominical, mesmo vividas numa certa aridez, contribuem a descarregar nosso coração desta chapa de distrações, de cuidados, que nos cortam de nosso precioso tesouro. A meditação, de preferência da Escritura, pode nos abrir ao sopro do Espírito (basta resistir à tentação de se comprazer nela mesma, numa sorte de fusão infantil...). A oração em comum, portada pelo canto, se ela não sucumbe ao ritualismo ou ao estetismo, é também uma via, importante. Nós somos chamados a tornarmos o que somos no fundo de nós mesmos – “orações vivas” (André Louf).

Decerto, na cultura atual, existe dificuldade em se recolher. Mas podemos nos impor, a cada noite, com a porta fechada o telefone desligado, alguns minutos de silêncio. Devemos distender nossa relação ao tempo, tomar, de longe em longe, o tempo de nos maravilharmos, de “fazermos eucaristia em todas as coisas” como demandava São Paulo. [...]

Vivemos num barulho ensurdecedor e por vezes nos tornamos incapazes duma palavra verdadeira sobre nós mesmo e sobre os outros, sobre a criação. Existe um silêncio ensurdecedor que se encontra no interior da vida justamente, o qual é necessário liberar.

A vida cristã confirma e se alimenta pela Liturgia. A palavra grega significa “a obra do povo”. Ela é em efeito comunhão que Deus nos dá na medida onde nós O acolhemos, escutando Sua Palavra, consumindo o pão tornado Sua própria vida. No coração de todo o desenrolar da Liturgia da Igreja, se encontra a Eucaristia e esta palavra designa nossa gratidão: eucharistô, em grego, hoje mesmo, quer simplesmente dizer “obrigado”.

Assim a Liturgia, fundamentalmente, celebra ela o Cristo Ressuscitado que o Espírito Santo torna presente dentre nós, Ele em nós e nós n´Ele. Todo ofício, por mais breve que ele seja, é um raio do sol pascal. Nós o acolhemos na amizade e na reconciliação; ele exige o “beijo da paz”. A Liturgia é necessariamente pessoal e necessariamente conjunto, para além de toda passividade e de toda solicitude. Ela oferece nossas preocupações e nossos sofrimentos, os apresenta ao grande sol de Deus que pacifica e cura, e nos dá a força – o pouco que seja – de pacificar e de curar. [...]

O mundo foi criado para tornar-se eucaristia. [...] Existe, no cerne das coisas, uma celebração muda. É ao homem que cabe este fazer ressoar. Deus, na Gênesis, lhe pede para “nomear” os vivos. Pois o homem é por vezes tanto do céu como da terra. E Deus lhe faz dom do mundo para que todos dois, Deus e homem, façam do mundo um imenso poema litúrgico. [...]

Cristo, dizia um grande místico bizantino do XIV século, Nicolau Cabasilas, não é somente a Cabeça, mas o coração da Igreja. Pela eucaristia, Ele torna-Se nosso coração. Neste coração onde o fogo habita a partir de então, é necessário que a inteligência da cabeça e o elã do éros se metamorfosem no cavidade crística. Então se abre o quê os ascetas chamam de “o olho do coração”, o “olho de fogo”, e este olho, este olhar, revela-se nos encontros humanos como nas relações entre o homem e o universo de imperceptíveis e portanto infinitas potencialidades eucarísticas. “Em qualquer condição, estejais na ação de graças”, quer dizer, fazei eucaristia, diz o Apóstolo (I Ts. 5, 18). Talvez seja a melhor definição da vida cristã.

Existe uma grande necessidade do Evangelho nas sociedades. Quanto mais ele parece ser o patrimônio de minorias, mais precisamos dele, não como necessidade de verdades opostas, mas muito mais além, como língua exprimindo o amor absoluto do pai pelo filho que dispersa todo eu bem e que permanece sem nada.

Na sociedade secularizada se desenvolvem em efeito simultaneamente fenômenos que parecem em contradição uns com os outros, mas que estão fortemente ligados: uma indiferença tingida de certa hostilidade para com o Cristianismo [...]; uma ideologia mercadora difusa que exalta a conquista e o dinheiro, o desejo e o prazer [...]; espiritualidades desenfreadas que põem o acento sobre o éros e o cosmos, sobre a meditação cientificamente levada [...], o ponto comum sendo a busca de estados fusionais, talvez cimo do narcisismo: a crescente oposição entre o Norte rico e o Sul pobre.

Neste contexto, o testemunho do Evangelho só pode passar pela consciência, a liberdade, o combate também por uma melhor repartição das fontes do planeta. Por exemplo e pela vida. [...]

É necessário, assim, ir em direção a uma santidade nova, aberta por vezes ao Espírito e à toda complexidade da vida social, cultural, cósmica. Mas, neste quadro, o testemunho exige também um profundo remanejamento de seu conteúdo. Nós assistimos a uma modificação fundamental na apresentação do Cristianismo. Uma reflexão renovada sobre o mal se impõe, sobre o Deus da kenosis, sobre a própria noção de todo-poder –e logo sobre o inferno [...] - , sobre a história e a escatologia, sobre o éros e sobre o cosmos, sobre a pessoa e a comunhão, à luz da Trindade que é por vezes plenitude da unidade e plenitude da diversidade. É necessário também uma reflexão renovada sobre a técnica: pois tudo que é possível não é um destino inelutável.

Os monges do Ocidente e do Oriente cristãos têm muito a nos dizer. Ele sabem os caminhos ao “lugar do coração”, mas colocam sempre a interioridade na perspectiva da comunhão, o conhecimento na perspectiva do amor. O rosto e o infinito partiram ligados. Torna-se, então necessário, sob o meu ponto de vista, assumir a busca do humanismo moderno, guardando, em contrapartida, a abordagem do mistério na interioridade, como nos símbolos cósmicos. Não existe oposição entre estes dois movimentos do coração e do espírito, mesmo se, no Ocidente, estamos habituados a uma sorte de separação natural entre o espaço de Deus e o espaço do homem, como se fosse possível traçar uma linha de demarcação. Mas se as vedações e as pretensões de encontrar Deus ignorando o homem ou aquelas de compreender o homem fazendo abstração de Deus se chocarem, descobrimos que o cosmos e a história têm lugar e linguagem possível de se encontrar. 

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